terça-feira, outubro 24, 2006

Golpe de Estádio #04: Capítulo I (Voz de Prisão)

José Guímaro estava no centro do estádio. Apitava. E o povo aplaudia. Os jogadores choravam de emoção. As principais estações de TV tinham para ali destacado os seus melhores repórteres, grande parte deles ainda imberbe. E ele, no centro do terreno, apitava, o povo aplaudia, os jogadores choravam e as televisões filmavam sem pausas para a publicidade. Disputava-se a final do campeonato do mundo de futebol. E o melhor em campo só podia ser ele, o árbitro. Ele, José Guímaro.
Trrrrrriiiiiiiiim! Não, não era o apito. Era a campainha da porta. O povo já não aplaudia, os jogadores não choravam e as TV´s não gravavam. Ao acordar, num sobressalto, José não conseguiu mesmo evitar o penico, que se derramou sobre as pilosidades generosas da carpete comprada há duas semanas na Feira de Espinho. O dia começava mal para José e, que soubesse, não se previa nenhuma final mundial.
No quarto, ainda na penumbra, um peixe vermelho nadava no aquário e um Buda jazia numa floresta de bibelôs. Num canto, as pantufas azuis de José brilhavam, com as lantejoulas a reflectirem o emblema do clube que mais ganhos lhe tinha dado.

- Quem é? - perguntou, já na sala, agarrado a um galgo de louça que tinha comprado há um ano numa viagem a Barcelos.
- Polícia! Judite! - ouviu do outro lado. José beliscou-se. Seria um pesadelo? Não era. O relógio do vídeo piscava, anunciando que faltavam cinco minutos para as sete horas.
- Abra. Temos um mandado de busca! - voltou a ouvir.
- Provavelmente, bebi de mais a noite passada - ainda pensou José. - Polícia? Não pode ser, eles disseram-me que...

A porta caiu ao segundo pontapé, abrindo uma série de comentários que ainda hoje ninguém sabe a quem atribuir.
- Mas o que é isto?
- Que cheiro...
- Que fazem aqui estes homens, Zé?
- Estou feito...
- Calma, Zé, isto só pode ser brincadeira...
- Brincadeira? Só se for de mau gosto.
- Meus senhores, isto é muito sério.
- Mas eu estou inocente...
- É o que vamos ver...
Aqui, as luzes acenderam-se. E também se fez luz na cabeça de José. Alguém o denunciara à polícia. E foi então que desmaiou, urinando pelas pernas abaixo. Lá fora, na pacata aldeia de José, Rex, o cão de estimação de toda a gente, morria de ataque cardíaco depois de mais uma aventura com «Lacie». Na loja do Senhor Gomes bebiam-se os primeiros bagaços do dia, e um pouco por todo o País dormiam em paz os senhores do futebol. Mas naquela casa, naquela modesta casa, as sombras agitavam-se na luz. E o cheiro da urina impregnava o ambiente. José arribou um pouco mas continuava no mesmo pesadelo. Voltou a desmaiar e cagou-se. Um polícia vomitou e o outro pediu uma cerveja. Iniciava-se a investigação.
Quando bebia o segundo gole de cerveja, o agente Marques descobriu a garrafa de leite. Que não tinha leite, mas dólares. E no meio dos dólares, lá estava A PROVA. Um cheque!
Guímaro voltou a recuperar os sentidos. Mais calmo, mas sempre a cheirar mal, começou a responder às perguntas dos polícias sentado num sofá de pele de camelo que comprara em Marraquexe, ao que disse, embora desde logo um dos agentes desconfiasse que tal mastodonte tivesse viajado mais de mil quilómetros até ali estacionar.
- De quem é este cheque? - perguntou, tentando ser duro, um dos agentes, o Pires, cuja maior ambição era ser plantador de Kiwis na costa alentejana.
Guímaro hesitou, pigarreou e, vendo que não podia fugir da questão, acabou por dizer:
- É de um dirigente desportivo e foi para comprar leite.
- Leite?! - reagiu o agente Marques, que também era bombeiro voluntário nas férias grandes, em Bemposta.
Dali já não saía mais nada. E o cheiro!... Por isso, os agentes tomaram uma decisão:
- Vá lavar-se que está preso!
Enquanto Guímaro se vestia, Pires e Marques aproveitaram para lhe revistar o automóvel, um «Volvo» topo de gama. No porta-luvas, encontraram dois bilhetes de avião para Madrid e uma miniatura da Nossa Senhora de Fátima. No banco traseiro, os jornais desportivos, espalhados, não deixavam dúvidas: o nível técnico de Guímaro encontrava-se algures entre a bosta de vaca e o vomitado de canguru.

Mas nem era bom falar nessas coisas, pois os agentes da PJ ainda estavam enjoados com o cheiro que encontraram dentro da modesta vivenda de José. Antes de partir para Lisboa, Marques quis voltar ao quarto de Guímaro. Debaixo do colchão, encontrou duas promissórias de cinco e doze mil contos. O importante era o cheque. Podia ser mesmo mate. Mas, apesar da anestesia mictórica e afins, o faro policial dos agentes ainda conseguiu percepcionar uma agenda sob o telefone.
- Porque é que tem aqui o nome do Senhor Adriano Pinto? - perguntou o Pires.
Guímaro apertou o nó da gravata e, sabendo que não podia encobrir o nome de um dos grandes barões do futebol, respondeu um pouco envergonhado:
- Esse número é da minha mulher...
- A sua mulher tem negócios com o Senhor Pinto?
- Não é bem isso - disse Guímaro -, acontece simplesmente que eles são muito amigos, e como eu apito sempre jogos longe de casa, o Senhor Pinto faz o favor de passear ao domingo com a minha mulher. É muito simpático da parte dele.

A mulher de Guímaro é que continuava a não falar. A filha chorava num canto da sala. E assim partiram para a capital.
O dia nascia quente. Nos campos, os homens iniciavam a faina, e um «TIR» punha as tripas do Rex de fora, fazendo rolar a sua cabeça para a valeta, onde ficou de olhos abertos, como se estivesse atento à partida de Guímaro para Lisboa, algemado, no banco de trás de um reles Fiat «Tipo» apenas de três portas e com o escape meio roto. Ao mesmo tempo, outras brigadas da «Judite» atacavam noutros pontos do País. A «Operação Golpe de Estádio» estava finalmente em marcha.
Na casa de Reinaldo Teles, na cidade do Porto, este conhecido dirigente preparava-se para se deitar quando a campainha soou. Eram sensivelmente 7 horas, e a madrugada já se apresentava quente.
- Polícia!
Reinaldo, empresário da noite, ex-campeão de boxe, como lá mais para diante se verá, fez a sua melhor pose para enfrentar os agentes, tentando adivinhar o que é que se estava a passar. Num primeiro momento, pensou que tinha sido traído por uma das suas putas e talvez por isso é que exclamou...
- Puta de vida!
A polícia entrou e inquiriu:
- Onde guarda os documentos?
- Que documentos?
- Documentos.
Reinaldo quis saber mais.
- Isso tem a ver com droga?
Irritado, Borges, o agente 23 da 2ª secção, abanou a cabeça.
- Não, se tivesse a ver com droga não tínhamos tocado à porta. E agora deixe-se de conversa e mostre-nos os documentos.
- Droga de vida! - voltou Reinaldo a descair-se. Reinaldo mostrou o passaporte e o bilhete de identidade.

- Já visitei 24 países! - disse, sem que ninguém registasse o menor espanto.
- Já fui à Letónia! - insistiu.
- Queremos mais! - gritou o Borges com aquele olhar parado que a malta lá na «Judite» tentava sempre evitar, pois era sinal de que o dia não estava a correr bem ao agente 23. Nessas ocasiões, Agostinho, o seu parceiro contava até 24.

Reinaldo pressentiu o perigo e abriu o cofre. E os agentes foram rápidos na busca.
- Quem lhe deu este cheque? - quis saber o Borges.
Reinaldo quase foi fulminado pela pergunta, mas aguentou o «murro», pois era homem para não se ir abaixo facilmente e não queria deixar ficar mal o patrão. Reinaldo o que queria era morrer. Pensou que tinha terminado ali a sua fulgurante carreira de dirigente desportivo. Num curto lapso de tempo, recordou a sua ascensão no clube que sempre amou: chulo, pugilista, seccionista, segurança, amigo pessoal do patrão, seu confidente e, finalmente, único homem em quem ele confiava.

- E eu a pensar que um dia seria tão famoso como a Carmen Miranda - disse baixinho.
A documentação encontrada foi considerada insuficiente para determinar a prisão imediata de Reinaldo Teles. Embora relutantes, os agentes retiraram-se, não sem antes admirarem uma reprodução de «Mona Lisa» que lhes sorria no corredor de acesso à porta principal da casa de Reinaldo. Reinaldo estava aliviado e correu atrás dos agentes.
- Senhor Borges, não quer um café.
- Não senhor, prefiro um poema - e bateu com a porta na cara de Reinaldo, que estava longe de pensar que o agente 23 ia aos jogos de futebol para se inspirar. O estádio para ele seria sempre «um pequeno búzio onde murmura o mundo», como um dia escreveu o poeta Álvaro Magalhães. «Mas isso é muito areia para a pick-up do Reinaldo», pensou, enquanto entrava no seu automóvel com aquele olhar parado muito especial que levou o seu colega a preferir regressar à sede montado num velho autocarro: o «78».

Na sua casa, ainda descalço, Reinaldo Teles respirou fundo, mas o telefone já tocava.
Do outro lado da linha, tremendo de medo, ouviu-se a voz do seu fiel amigo Jorge Gomes, ex-jornalista e ex-bate-chapas promovido à pressão como paga de favores no tempo da sua meteórica ascensão como dirigente desportivo, num ano da grande seca que rebentou com os stocks da «Super Bock».
- Revistaram a minha casa, Reinaldo.
- Também a minha foi revistada, Jorge. Estamos feitos.
- Tem calma, pá, o chefe tem muita força. É intocável.
- Mas nós não somos...
- Ouve lá, mas não estás filiado no partido?
- Estou, mas para que é que isso serve? Pá, vamos é ter calma, não te enerves, o general não nos vai deixar cair, com medo que a gente chibe. Levaram-me um cheque, Jorge. E aí, encontraram alguma coisa?
- Não sei, ainda não vi bem. Mas eu estava limpo. Quiseram apenas saber como é que eu levava um vida tão boa a ganhar apenas 90 contos por mês. Os gajos até sabiam que eu tinha dado um apartamento à minha amante...
- Tamos feitos!
- Calma, Reinaldo, agora sou eu que te digo para teres calma. Ainda não fomos dentro.
- E terá ido alguém?
- O Guímaro?! A esta hora já está preso...
- Mas desliga o telefone que já deve estar sob escuta. Vamos falar disto com o chefe, no clube.
Reinaldo bebeu um café que a mulher, Luísa, lhe serviu antes de sair de casa e mandou a filha comprar os jornais desportivos.
- Vamos matar o filho da puta que nos denunciou - atirou, entre dentes, e a salivar pelo canto esquerdo da boca.

Para recordar velhos tempos, fez um movimento de pernas, golpeou o ar com um gancho de esquerda e terminou com um directo aos queixos de coisa nenhuma. O peixinho vermelho do aquário boiava de barriga para o ar.
- Porra, quantas vezes tenho de dizer que não se pode dar comida a mais ao animal, minha besta! - berrou Reinaldo, entornando o café nas calças de linho, o que o levou a mais um movimento de pernas que a idade já não lhe consentiu, pois terminou estatelado no tapete de Arraiolos que tinha à entrada da casa de banho.
- Puta de vida - gemeu, com um bolbo já a crescer-lhe na canela.
A polícia tinha colocado em marcha uma operação de grande envergadura. O objectivo era claro: apanhar a rede de corruptores e corrompidos envolvidos no mundo da arbitragem portuguesa. A operação nascera há vários meses, após algumas denúncias. Os jornais desportivos tinham-se mesmo antecipado à investigação policial. E, no meio futebolístico, as histórias sucediam-se. A polícia não podia ignorar mais o que se passava nos bastidores da bola.

A organização tinha quatro anos de histórias de malandrice. A rede era já um polvo.
Do artesanato dos primeiros tempos, passara-se ao mais refinado profissionalismo. A empresa, altamente lucrativa, mas sem nome ou registo comercial, movimentava, por semana, milhares de contos. Isentos de tributação, o que ainda dava mais gozo...
Reinaldo era o operacional. O patrão era, obviamente, Pinto da Costa. E Jorge Gomes nunca se importava de sujar as mãos e de dar a cara. Os outros dois desconfiavam mesmo que seria capaz de se submeter a uma lobotomia por amor à causa (amigos do círculo mafioso garantiam mesmo que isso já tinha acontecido). Não era necessário mais ninguém nas operações especiais.
Era tudo muito claro: metade de cada aposta para eles, outra metade para os árbitros.
Os «patos» estavam sempre dispostos a entrar com muita massa, principalmente na recta final do campeonato. Quando as provas principais se iniciavam, o estado-maior decidia logo quem subia e quem descia, na certeza de que era nos escalões mais baixos que mais alto se ganhava.
Eis um bom exemplo do sucesso desta empresa sem nome: um clube da I Divisão investiu no final do campeonato, 50 mil contos para evitar a descida. O dinheiro foi entregue a Jorge Gomes.
Mas o clube desceu, pois por vezes a bola teimava em ser mesmo redonda. Ou, se calhar, foi o Jorge que se esqueceu dos pagamentos.
Quando a polícia começou a investigar, pensou que seria fácil apanhar os tubarões. Mas rapidamente percebeu que tinha de usar um isco de alta qualidade. Não chegava armadilhar um cheque. Aliás, essa tinha sido uma táctica que o advogado (Lourenço Pinto) do patrão tinha usado para fazer o seu show-off, apanhando assim um juiz de campo que estava mais que chamuscado. De um dia para o outro, com a polícia em campo, a música deixou de se ouvir, os pares imobilizaram-se no meio do salão e alguém gritou, quase em pânico: «Chamaram a polícia!». Desde esse dia, tudo mudou. Os árbitros fugiam como o Diabo da cruz de qualquer contacto, o volume de negócios caiu abruptamente e uma calma de morte instalou-se no mundo da bola. O gestor da conta de Jorge Gomes ousou até perguntar-lhe se estava a pensar mudar de banco, o que provocou no titular da segunda maior conta daquela agência uma reacção eléctrica:
- Homem, não me fale em bancos que me faz lembrar os tribunais...

A caminho de Lisboa, José Guímaro contava os marcos quilómetros. «Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, mais um quilómetro, um, dois...»
- Cala-te, pá, que ainda me fazes dormir! - gritou o agente Pires, que era quem conduzia o Fiat «Tipo».
- Deixa-o lá, pá, ao menos o gajo demonstra que sabe contar.
Guímaro ia responder com uma «contas é comigo», mas travou a tempo.
- Quero mijar - disse baixinho.
Os agentes não ouviram bem.
- O quê?
- Quero urinar - corrigiu, pensando que se tinha excedido.
O «Tipo» encostou à berma da estrada nacional, e Guímaro foi convidado a sair. Os dois agentes discutiam alguns pormenores da missão quando o voltaram a ouvir.
- Senhores, algemado não posso fazer chichi...
Mas teve de fazer.
- E faz tudo agora! - gritou o agente Pires.
- Mais cedo ou mais tarde, o gajo vai deitar tudo cá para fora - juntou o seu colega de profissão.
Mas Guímaro riu-se para dentro. O problema principal, afinal, era não poder fazer uma mijinha a tempo e em condições. O resto, ia resolver-se. «A propósito» - pensou -, que «será que o patrão já sabe o que me aconteceu?». Foi uma pergunta fatal. Depois dela Guímaro, perdeu a conta aos marcos quilométricos.
- Não te esqueças, temos de parar em Rio Maior para comprar um pão-de-ló - fez questão de avisar o Marques, acendendo mais um «suave».

O dia prometia ser longo e quente. O «Tipo» derrapou ligeiramente numa curva e desapareceu no lusco-fusco, preparando-se para ultrapassar um comboio de camiões. O castelo de Pombal continuava no seu sítio. O Marques nem por isso...
O patrão, o chefe, ele, já sabia. E já esperava. Melhor do que ninguém, ele sabia que aquilo um dia ia acontecer. Aliás, já tinha até avisado os adeptos do seu clube para as possíveis manobras das forças da ordem. Coisas de filmes, pensou, antes de passar à consulta dos recortes de jornais, devidamente destacados a amarelo por Jorge Gomes, mestre na confecção de coisas miúdas e autor de uma obra prima na restauração de um Fiat 600 que fora esmagado por uma «Berliet».
Pinto da Costa, ele, o chefe, pois, o patrão, o «boss», pediu à telefonista que lhe bloqueasse a linha. Precisava de reflectir. Com a gatinha de estimação no colo, sentou-se no sofá e perdeu-se nas suas recordações.
Há 20 anos...

3 comentários:

bgvp disse...

Bela transcrição... mas ainda ha muita gente que pensa que somos malucos... e que a bola é redonda e que ganham os melhores... bla bla bla...

Thor disse...

Por muito próximo que acreditemos que este texo se encontra da realidade, ele é ficção!

RG54 disse...

...E atenção que o Guímaro "vomitou" mesmo tudo o que sabia, que isto de estar pendurado de cabeça para baixo na Boca do Inferno deve fazer uma ligeira aflição. O problema é que "isso" depois não fez prova em tribunal. Porra de justiça. Parabéns por mais um bocado do polvo. Saudações Sportinguistas.